Filme do tempo, gênero do espaço
Sem demora, mas de maneira estritamente objetiva, os protagonistas de alguns dos conflitos mais caros do cinema faroeste são introduzidos. Por trás dos créditos iniciais deste filme – os quais exibem o título Stagecoach, antes do letreiro Directed by John Ford –, podemos avistar a diligência, a cavalaria e os índios, bem como a natureza desértica da terra que lhes pertence.
Em menos de dois minutos, os contornos destes corpos fotografados em preto e branco despertam no espectador a imagem e a lembrança de temas recorrentes desse gênero cinematográfico, sejam históricos – fundamentados por pioneiros como D. W. Griffith e Thomas H. Ince, mas também pelo próprio John Ford (O Cavalo de Ferro, 1924) – ou mitológicos – estabelecidos por figuras como William S. Hart e Tom Mix, mas também pelos próximos minutos do longa-metragem que assistiremos.
Trata-se do clássico No Tempo das Diligências (1939), uma das obras que resgatou o prestígio dos filmes de faroeste no amanhecer da década de 1940. Escolhi revê-lo na primeira manhã deste ano, como forma de iniciar uma despretensiosa – pois, entusiasmada – maratona naquele que é considerado por André Bazin como sendo o "gênero cinematográfico norte-americano por excelência".
A partir dessa abertura panorâmica, certas tônicas do cinema faroeste são naturalmente aprofundadas, mas nunca em detrimento do que está por trás – o espaço – ou do que está por vir – o tempo. Essa investigação se dá por meio do confronto das personagens principais, as quais ocupam papéis de arquétipos comuns no imaginário do gênero – uma prostituta que deseja mudar de vida; um médico alcoólatra; um vendedor de uísque medroso; um banqueiro ganancioso; um jogador misterioso; uma esposa grávida, que parece atraída pelo companheiro de viagem; um cocheiro corpulento; um xerife comprometido; enfim, um jovem John Wayne em estado de graça, interpretando um detento que fugiu da cadeia em busca de vingança.
No interior da diligência, na medida em que o comboio avança pelo hostil território dos apaches, as relações interpessoais e intrapessoais desses passageiros são expostas e exploradas. A dramaticidade é intensificada quando diferentes concepções de mundo se divergem, mas principalmente quando motivações distintas se convergem. Pois será no chacoalhar dessa carruagem que entra em jogo a necessidade de todos eles pensarem no coletivo, uma vez que homens e mulheres precisarão proteger a carruagem do ataque de nativos norte-americanos, enquanto oram pela chegada da cavalaria.
Existe um trânsito assombroso, um "equilíbrio perfeito" para continuarmos com Bazin, entre os dramas particulares e os problemas coletivos. Uma força que advém da sutileza fantasmagórica desta encenação – uma finura que faz pequenos gestos, como a entrada em cena de Ringo Kid, serem alçados ao patamar de verdadeiros milagres cinematográficos.
A escalada das ações marcha de modo surpreendente harmonioso. Seja com o ataque, o qual a decupagem deve ter precedente apenas em Eisenstein; o tiroteio silencioso na sombria Lordsburg; o abraço de reencontro da mulher com o homem que voltou vivo da missão. Três ápices que poderiam facilmente encabeçar três outros faroestes.
Como eu havia escrito, No Tempo das Diligências de John Ford é um filme que não perde a noção do tempo, não apenas porque consegue encenar uma jornada um tanto quanto épica em pouco mais de 90 minutos, mas por ser capaz de tratar nesse ínterim dos mitos e das verdades históricas e psicológicas do cinema faroeste.
Eu também havia escrito que a obra não deixa para trás o espaço, afinal de contas, os tradicionais símbolos resgatados do gênero serão justamente entalhados nesta paisagem que está presente desde a sequência de abertura; no Monument Valley; na poeira que avança sobre os cavaleiros que escoltam a diligência; enfim, num dos mais emblemáticos horizontes fordianos que se abre para o casal partir segurando as rédeas do destino.


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